Os relatos sobre situações em que homens teriam sido vítimas de acusações falsas sob a Lei Maria da Penha ( Lei 11.340, de 2006 ) e a controvérsia sobre a aplicação de medidas protetivas marcaram a audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH), nesta segunda-feira (16), que discutiu aperfeiçoamentos na legislação e aumento das penas para denunciação caluniosa. Outros debatedores, porém, manifestaram apoio à lei diante da persistência da violência contra a mulher.
A realização da audiência atende a requerimento ( REQ 34/2024 — CDH ) do senador Eduardo Girão (Novo-CE), que registrou a elevada proporção de deferimento de medidas protetivas de urgência para mulheres. Ele lembrou situações em que “supostas vítimas constroem histórias de agressões ditas como sofridas com o intuito de prejudicar o parceiro” no contexto de interesses patrimoniais ou de disputa por guarda de filhos.
Presidindo a audiência, o senador Paulo Paim (PT-RS), presidente da CDH, admitiu a controvérsia em torno do tema, que teria motivado a Bancada Feminina a requerer a retirada da audiência. Paim, porém, indeferiu o requerimento de modo a permitir o livre debate. Ele ressalvou que “não há lei perfeita”, mas classificou a Lei Maria da Penha como marco divisório na garantia de direitos e sublinhou que a violência contra a mulher é preocupante.
— 2023 foi o ano com maior número de feminicídios desde 2015, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram 1.463 vítimas de feminicídio no ano passado em todo o país, ou seja, [proporção de] 1,4 mulher morta para cada grupo de 100 mil. (…) A violência contra a mulher assume diversas formas: física, psicológica, moral, sexual e econômica — lamentou o presidente da CDH.
Girão, por sua vez, defendeu ajustes na Lei Maria da Penha.
— A lei produz pontos muito positivos. Mas tem deixado algumas brechas que nós vamos ouvir aqui, de pessoas de diversas regiões do país. Situações reais, onde eventualmente possa estar causando injustiça, especialmente com relação às falsas denúncias.
Em participação por vídeo, Maria da Penha Maia Fernandes — cujo nome a norma foi batizada — também citou a persistência de elevados índices de violência contra a mulher, mas defendeu a aplicação da lei “sem brechas, sem tolerâncias, sem impunidade e sem negligências”. Em sua avaliação, faltam instrumentos para apoio às vítimas da violência doméstica e para levar às mulheres o conhecimento de seus direitos.
— Acredito no fim do feminicídio e continuarei a unir forças com quem acredita. Lutarei com quem luta. Espero e conto com todos e todas vocês: que possamos avançar por mais 18 anos — disse ela.
A presidente nacional da Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas Nacional), Regina Beatriz Tavares da Silva, disse que há um problema de segurança jurídica na aplicação da Lei Maria da Penha, que demandaria um aprimoramento no texto da norma.
— A simples palavra da mulher, em sendo convincente, principalmente numa delegacia especializada e com o posterior crivo judicial, causa a concessão de medida protetiva de afastamento entre pais e filhos, e pode levar tanto a um afastamento justo como a um afastamento injusto.
Ela defendeu uma redação que mantenha a proteção à mulher, mas que exija indícios de prática de violência doméstica para a concessão de medidas de afastamento. Regina ainda criticou o projeto de revogação da Lei da Alienação Parental ( Lei 12.318, de 2010 ).
A advogada Carolina Siebra também sugeriu o aperfeiçoamento da Lei Maria da Penha, que não pode ser usada como “instrumento de vingança”.
— O que há hoje é uma deturpação do uso da lei, o que faz com que esta seja descredibilizada. (…) O sistema de justiça se ocupa em proteger mulheres que não necessariamente precisam de proteção, enquanto [outras] mulheres perdem a vida porque precisavam efetivamente de proteção.
Também a advogada Mabel Portela citou os homens vítimas de falsas denúncias que a procuram para se defender. Ela manifestou apoio ao projeto em tramitação na Câmara ( PL 6198/20223 ) que aumenta as penas para denunciação caluniosa.
— O mesmo medo que eu tenho da minha filha ser vítima de violência doméstica, eu tenho do meu filho ser vítima de uma falsa denúncia.
A psicóloga Neyliane Onofre relatou os efeitos do transtorno do estresse pós-traumático (Tept), gerado pela violência doméstica, em todos os membros da família. Ela defendeu políticas públicas voltadas a crianças e adolescentes para deter o “ciclo abusivo” de conflitos familiares.
A vice-presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões do Estado do Ceará (Adfas Ceará), Anna Magalhães, criticou o uso indevido de uma legislação que teria o objetivo de defender as mulheres, mas acaba ferindo o princípio do devido processo legal.
— Através de uma palavra de uma suposta vítima, a gente consegue (…) afastar de supostos agressores direitos fundamentais e constitucionais.
O consultor financeiro Rade Plavsic disse que enfrentou uma medida protetiva sem base legal, o que teria gerado “dano irreparável” a si e ao seu filho.
— Contudo, não existe nenhuma pena, nenhuma repercussão para a autora dessa denúncia.
Em sentido semelhante, a advogada de Isabel Oliveira (familiar de vítima de falsa denúncia), Bárbara Melo, saudou os avanços que a Lei Maria da Penha tornou possíveis, mas criticou outros advogados que estariam tirando proveito da legislação em processos de divórcio, partilha de bens e guarda dos filhos, porque “basta a palavra da vítima”.
Alexandre Paiva apresentou-se como vítima da “epidemia” de falsas denúncias, estando afastado de suas filhas há mais de 5 anos por força de quatro medidas protetivas subsequentes. Ele destacou que, ao falar sobre o tema, descobriu que a situação não é um caso isolado.
— Temos uma lei no Brasil hoje (…) que se tornou inquestionável. Se você questiona, você automaticamente é tachado de agressor de mulheres. Acho isso tremendamente injusto.
Paiva também questionou o conceito legal de feminicídio, sustentando que nenhuma mulher é morta por ser mulher. A defensora pública Rafaela Mitre discordou, classificando o cenário do Brasil como “extremamente violento” contra as mulheres e alertou que a população feminina não está segura em seus próprios lares.
— Quando a lei fala que se mata por ela ser mulher, é por ela ser mulher sim. Temos questões de gênero relacionadas a essa morte: temos questões de dominação de homens (…) que se sentem donos de corpos de mulheres. (…) Os homens, em sua maioria, morrem em vias públicas, em estradas, e mulheres morrem em casa — rebateu.
Rafaela defendeu as medidas protetivas pelo tempo que for necessário “enquanto existir a situação de risco”, mas ressaltou que a luta em defesa da Lei Maria da Penha não é contra os homens e que a orientação da população é essencial para o fortalecimento da rede de proteção às mulheres.
Otacílio Guimarães de Paula — advogado do ex-marido de Maria da Penha, Marco Antônio Herédia Viveiros — sustentou a tese de um “erro judicial” que gerou injustiças tanto a seu cliente quanto a Maria da Penha. Ele considerou desproporcional a pena de feminicídio em comparação com outras modalidades de homicídio. Também criticou a possibilidade de falsas denúncias e lamentou seus efeitos negativos mais amplos nas famílias.
— De todos os funcionários públicos, a sua fé pública hoje é relativizada, mas a palavra da mulher na Lei Maria da Penha hoje é plena. E isso é um perigo.
Comentando as exposições, Paulo Paim disse que a existência da Lei Maria da Penha permitiu que aumentasse o número de denúncias de violações, e lembrou que 99% das denúncias são de violência do homem contra a mulher.
— Não chega aqui esse tipo de denúncia, que diga que o homem é que está sendo assassinado. Eu faço um apelo: se tiver, me digam. (…) O espírito de nós, legisladores, vem para proteger a parte mais fraca.
Girão disse que os relatos na audiência pública já são um ato de coragem e avaliou que ninguém aguenta mais o “politicamente correto”.
— Essa questão de militância ideológica, partidária, não vai segurar a verdade. A verdade sempre triunfa.
A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) manifestou solidariedade aos casos de denúncias falsas, mas sublinhou que são exceção e cobrou a construção de uma “cultura de paz”.
— Precisamos da Lei Maria da Penha, e ouvi todos dizendo que é importante. E é mesmo.
A senadora Leila Barros (PDT-DF) lembrou que o Código Penal já pune a denúncia caluniosa, e o eventual recurso à Lei Maria da Penha por “pessoas mal-intencionadas” não pode motivar retrocessos.
— A impressão que me deu é de uma tentativa de calar as mulheres, de intimidar, de descredibilizar a mulher, que é a principal vítima.