Mais de 216 mil menores de idade foram vítimas de abusos sexuais na Igreja Católica da França desde 1950 — revela um aguardado relatório divulgado nesta terça-feira (5) por uma comissão independente. O número aumenta para 330 mil menores abusados (114 mil a mais) quando levados em consideração os laicos que trabalharam nas instituições católicas, afirmou a Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja (Ciase).
Até o início dos anos 2000, a Igreja Católica francesa mostrou uma "cruel indiferença" para com as vítimas dos abusos, que tiveram um "caráter sistêmico", destacou, durante a apresentação do relatório, o presidente da Ciase, Jean-Marc Sauvé, que já foi vice-presidente do Conselho de Estado.
Sauvé, católico praticante de 72 anos, apresentou o relatório de mais de 2.000 páginas, que considerou "uma carga pesada tanto no sentido literal como figurado", à Conferência Episcopal da França (CEF) e à Conferência de Religiosos e Religiosas da França (Corref). Essa investigação foi solicitada por ambas as instituições.
A resposta do episcopado não demorou. "Meu desejo no dia de hoje é pedir perdão", declarou o presidente da CEF, monsenhor Éric de Moulins-Beaufort, que expressou "vergonha" e "determinação de atuar" com as vítimas.
A França não é um caso isolado.
Ao menos 3.677 crianças foram vítimas de abusos de religiosos na Alemanha entre 1946 e 2014, segundo um relatório de 2018. E, de acordo com advogados independentes, mais de 11.000 denúncias foram apresentadas nos Estados Unidos.
Outros escândalos explodiram no Chile, no Canadá e na Austrália. Em abril, especialistas com mandato da ONU, mas que não falavam em nome da organização, pediram uma ação ao papa Francisco e expressaram "grande preocupação" com as muitas acusações.
O pontífice argentino transformou a luta contra as agressões sexuais em uma de suas prioridades e publicou, em 2020, um manual para a gestão das denúncias na Igreja Católica.
'Retornam do inferno'
Os 22 membros da Ciase iniciaram os trabalhos em fevereiro de 2019, após uma série de escândalos. Entre eles, está o do padre Bernard Preynat, condenado em 2020 a cinco anos de prisão por abusos cometidos nos anos 1970 e 1980. Esse caso inspirou o premiado filme Graças a Deus, de François Ozon.
"Vocês, membros da comissão, retornam do inferno", afirmou, durante a apresentação, François Devaux, fundador da associação de vítimas La Parole Libérée.
Em 2016, essa organização denunciou o caso de Preynat, diante da inação do cardeal Philippe Barbarin. Os primeiros números revelados já demonstram um quadro de horror. Dos 115.000 padres ou religiosos homens registrados nos últimos 70 anos na França, havia "entre 2.900 e 3.200 pedófilos", disse Sauvé no domingo (3), ao destacar que esta é uma "estimativa mínima".
Além de avaliarem o alcance dos fatos, os especialistas (advogados, teólogos, psicólogos, historiadores, entre outros profissionais) analisaram a resposta da Igreja e apresentaram 45 propostas para reconhecer a dor das vítimas, evitar outros casos e reformar o direito canônico.
"Quero que a Igreja reconheça essa violência extrema, que dê novas diretrizes aos clérigos, mas, sobretudo, que não vire a página", afirmou Jean-Marie, um homem de 82 anos que foi vítima de abusos por religiosos durante a infância.
A Ciase pede à Igreja que reconheça sua responsabilidade "sistêmica", que inicie cerimônias públicas para homenagear as vítimas e que deixe claro que o sigilo da confissão não cobre esses crimes, os quais devem ser denunciados à Justiça.
Outra recomendação é indenizar as vítimas pelos "danos sofridos", mas com o patrimônio dos agressores, ou da Igreja, e não com as contribuições dos fiéis.
"Vocês devem pagar por todos esses crimes", disse François Devaux.
Os fatos já prescreveram na maioria dos casos, e muitos de seus autores faleceram, o que torna improvável um recurso à Justiça. Para 2022, o episcopado francês prometeu indenizações financeiras, algo que não gera unanimidade entre as vítimas.
O relatório será examinado pelo Vaticano. O papa Francisco, que deve ter uma audiência privada em 18 de outubro com o primeiro-ministro francês, Jean Castex, já abordou a questão com bispos franceses em setembro.