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ELIVIO BERNARDO: Mais que identidade, um show de alegria

A vida, a história, a paixão pelo rádio

02/11/2021 às 11h00 Atualizada em 02/11/2021 às 13h13
Por: Paulo Roberto
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União que perdura até hoje
União que perdura até hoje

Um pouco de Elivio Bernardo - O Show da Alegria

Por: Paulo Roberto

Elivio Bernardo nasceu em Xapuri, no seringal Iracema, colocação Limeira, no dia 6 de novembro de 1942, às 3 horas da manhã. Neste sábado de novembro de 2021 completará 79 anos de idade. O pai tomou rumo ignorado, e com 2 anos de idade Elivio perdeu a genitora e foi morar com os avós maternos. 

Acometido atualmente por um problema de garganta que lhe afeta a articulação vocal, o som é mitigado, comprimido, não obstante a dificuldade que se lhe projeta a voz e a formação das palavras, e logo trata de deixar no papel o esboço daquilo que deseja contar. 

Percebo que tem em mão a respectiva biografia, devidamente digitada, resultado da produção refinada da Academia da Terceira Idade, de Plácido de Castro-AC. Os relatos são mais gesticulados e tecidos à intensidade de seu modo e condições únicos, e com maestria e precisão, transferidos pela esposa Francisca Campos.

Compreende-se que algo convidativo remete à memória e ao espírito tão logo se entra na casa. São CDs que decoram e refletem o ambiente com o emblema vascaíno ao centro; o rádio de som habitual em destaque sobre a geladeira; os quadros de seu casamento, e como um suporte, os dos filhos e netos de seu núcleo maior, que parecem dizer por si sós que todos continuam felizes e unidos, apesar da distância geográfica, e que Elivio, um senhor de dons inigualáveis, construiu em múltiplas paredes da vida a boa e proveitosa integração com os seus com lições edificáveis, música, futebol e amor.

E, cativo ao pensamento nessa viagem, recebo a cadeira que me estendem, aproximando-me da mesa ao centro, revestido de mero observador e narrador, acercando-me dos relatos e anotações que Elivio apresenta, ouvindo atentamente a ambos, mas é por dona Francisca Campos que a dicção toma o curso normal.   

O xapuriense que perdeu os pais aos três anos de idade, e de certa forma um pouco da identidade pessoal, passou a morar com os avós maternos tomado pelo impacto da perda da mãe aos 12 anos, provou da criação com o tio, que morava no seringal Porto Rico, e por esse senhor e por todos os demais de seu sangue, a gratidão filial, dosa do passado sem meandros ou pormenores, tudo à sua condição momentânea. 

O falecimento dos pais não fez de Elivio um órfão do acaso. Enquanto principiava a adolescência, a força nos braços e na mente motivaram-no a traçar uma viagem de Xapuri a Rio Branco numa pequena canoa. Despediu-se do tio, desatou a embarcação do varejão firmado à margem da praia e remou incansável e silenciosamente por sobre as águas barrentas do rio Acre. Com o impulso dos braços e da mente foi motivado a seguir a viagem que durou uma semana, e para sobreviver contou com a ajuda dos ribeirinhos e conhecidos, a quem pediu alimento e abrigo durante o longo percurso fluvial.

Exausto após todos esses dias, desembarcou na capital acreana e foi procurar trabalho. Não conseguiu da primeira investida, e por isso passou a pedir comida nas ruas de Rio Branco. Mãos de ajuda também lhe foram estendidas. Alguns dias após ele e o irmão foram morar com o Epitácio, compadre do tio.

O porto de embarque ficava no bairro Seis de Agosto. Recebia pessoas em condições precárias diariamente, vindas dos seringais e colocações, motivadas por conversa e sonho de uma vida melhor, distantes da selva do Norte e das doenças malditas provocadas ao trabalhador, escasso de força, saúde e recursos.

Nessa lida, anos 60, Elivio, sem leitura e escrita, era praticamente escravizado, subutilizado, não havendo horizonte ou planos em prol de feliz conquista, quando sua condição humana esvai-se a contemplar um triste quadro de incerteza. O menino que havia perdido os pais, criado pelos avós e o tio, agora não tem mais lição diária ou amparo. Tudo é encenado e encarado na hora que lhe aparece diante de pessoas estranhas e preconceituosas.  

Foi então que conseguiu trabalho de transporte de água para  feirantes no mercado dos colonos em troca de comida. Eram mulheres que vendiam verduras e legumes e também cozinhavam. Passou um ano nessa atividade, um ano inteiro de cardápio de cor e salteado. Para dormir, enfrentava a distância e se acomodava num aposento da fazenda onde hoje projeta-se a renomada Avenida Amadeu Barbosa.

Tentou, ali mesmo no mercado, a venda de doces, mas o mínimo era o que ganhava. Desistiu. Trabalhou muito para a sua idade. Vendeu roupas, afinou o trato e o diálogo, procurou algo mais prazeroso. 

Aproximando-se dos dezoito anos, conseguiu emprego no Cine Teatro Recreio, no segundo distrito da capital acreana. Ali estava cercado das grandes produções cinematográficas de seu tempo, mas tal clamor não lhe pertencia ao ofício de mero zelador do chão onde passava a plateia que aplaudia, comia pipoca e com violência peculiar, fazia estremecer o mesmo chão e as cadeiras com a força da alegria, por vezes da ira e da frustração a cada cena, ou de lágrimas com Dio, Come Ti Amo. E para mais outras cenas ou novos filmes, Elivio, sempre pronto, punha-se a afixar cartazes de anúncio das matinês e cinemas de horário nobre, e percebendo não mais que Dois Mil Cruzeiros, continuava a namorar sua amada. 

Um certo dia o operador das máquinas, embriagado, deixou a esmo o equipamento funcionando e disse para Elivio:

- Vai olhar o filme porque eu vou tomar água. E Elivio, obediente e curioso, sabendo que da água que passarinho não bebe o homem vivia mudado e aparentemente abatido, prestou muito mais atenção e como o equipamento funcionava.

Depois desse fato, que se tornou frequente, o operador chamou Elivio e o ensinou a manejar a máquina de projeção, de colocar os filmes, rebobinar, consertar, e ele continuou fixando placas dos filmes e varrendo o chão do teatro que recebia centenas de pessoas a cada semana de estreia.

Num fatídico dia, o profissional do maquinário faleceu. O dono do cinema ficou desesperado. Não tinha até então alguém que substituísse o Nenen.

Alguém ali por perto só apontou para Elivio e disse:

- O Nenen ensinou tudo para esse aí. O senhor quer fazer um teste com ele? O dono respondeu que sim, e fizeram o teste. Elivio foi aprovado de primeira.

Passou três anos trabalhando no cinema. O salário dobrou, mas ficou congelado por todo esse tempo. E foi assim que saiu de cena e afastou a possibilidade de uma crise que teimava em se instalar no homem sonhador. 

A partir dos 19 anos integrou-se à Guarda Territorial do Acre, serviço com o qual não se identificou, e saiu poucos anos depois. 

Trabalhou como servente na construção da Assembleia Legislativa do Estado do Acre e na construção dos correios. Chegava na residência por volta de 22h ou 22h30min, e sobre o piso encharcado d’água movia-se no compartimento de 4 m x 6 m, porém repleto de esperança na Rio Branco que acolhia o homem da mata e dos pequenos vilarejos, só que desta vez, firmava-se no casamento e com a prole que o edificava e direcionava a se tornar mais humano e honesto possível.

Trabalhou por muito tempo como taxista. Casou-se com Francisca Ribeiro Campos, e juntos tiveram quatro filhos, sendo um deles falecido.

Em Plácido de Castro, exerceu atividade de comércio; foi proprietário do seringal Itamaraty em 1970, comprou borracha e castanha para revender para o seringalista e comerciante Luiz Gonçalves Pinto; gerenciou outros grandes seringais e a fazenda de seu irmão José Bernardo de Souza, por vinte anos.

Durante o tempo que gerenciou a fazenda de seu irmão, não lhe faltou nada, mas precisava dar continuidade aos estudos dos filhos.

Os filhos falavam para o pai que queriam estudar, e para tanto os ouviu, questionando deliberada e separadamente: 

- Filho, você diz que quer estudar, mas esta não é a primeira vez que recebo reclamações dos professores. Ou a bola ou os livros, meu garoto.

- Filhos, o estudo é o melhor caminho, o melhor marido ou mulher em certas circunstâncias. Sigam aqueles que lhes sejam fiéis e que tragam a vocês o melhor de acordo com suas aptidões e necessidades.

Elivio diz que valeu a lição que aprendeu pela vontade e alegria dos filhos de estudar, assim como os incentivou a não desistir de seus sonhos, quando um deles, para adquirir materiais e o próprio sustento, ao vir da fazenda para a cidade, trabalhou na sorveteria do Policial Civil Paixão. 

Todos os três filhos encontram-se firmes nos caminhos que passaram a trilhar. Um deles é Policial Militar, médico e odontólogo. Quando foi aprovado para dois cargos (bombeiro e policial militar) em determinados concursos, perguntou ao pai qual dos cargos poderia escolher. 

- Filho, essas duas profissões são arriscadas porque mexem com vidas. Fique com aquele que te ofereça além de proveito econômico, estabilidade, carreira e vantagens específicas de sua representação. E ser policial, apesar do perigo, é um desses cargos, mas pode decidir à sua maneira. 

Elivio conta esses fatos com lágrimas nos olhos. Sabe que sua alegria é revestida de gratidão a Deus, pois não precisou mutilar ou machucar os filhos para aprenderem alguma lição. Usou meras palavras de seu vocabulário, com potencial de sentimento produzido pelo coração. E sabe, mais que isso, que eles souberam ouvir e praticar a construção do saber intelectual e material de cada um. 

As fotos da parede são mais que confidenciais. Mostram sorrisos, canudos, indumentárias e méritos revestidos de humildade e determinação. Diz que queria que todas as famílias do mundo fossem iguais, pois está cansado de ver o desamor e a perda pela violência daqueles que não sabem o valor de um pai e de uma mãe. 

Elivio radialista

Foi ouvindo os bons programas das rádios do país, sobretudo do país boliviano vizinho, que Elivio Bernardo não largou o sonho de compartilhar os bons momentos através do rádio. Gostava do estilo do programa Jovem Guarda, do Ruy Braga.

Por curiosidade, aproximou-se do radialista renomado na região do Abunã. Não havia na época a explosão das redes sociais, mas as ondas sonoras da única rádio FM instalada até então, eclodiu por entre Plácido de Castro e às mais variadas localidades do Alto e Baixo Abunã, chegando aos lares de pessoas isoladas, esquecidas, que através das ondas sonoras e daquela frequência reencontraram a alegria, o entretenimento e o próprio dom da exposição do sentimento e da criatividade poética através de centenas de cartas de jovens e adultos perante as festividades do programa, da intelecção do pensamento e de todos os eventos organizados pelo então radialista.

Assim como nas atividades do cinema, Elivio teve oportunidade de conhecer e aprender como se opera a mesa de som, o ajuste do microfone e da voz, a difusão do som e de todas as notícias. Uma das auxiliares não pôde comparecer no dia, e Ruy incentivou Elivio, que posteriormente teve espaço no próprio programa do apresentador, e daí por diante conseguiu o seu próprio programa, o Show da Alegria, e com Ruy Braga organizou grandes eventos presenciados por mais de seiscentas pessoas. Os CDs da parede falam mais que tocam os forrós que Elivio até hoje gosta de ouvir.

Elivio Bernardo trabalhou em praticamente todas as rádios que foram instaladas na Bolívia, a exemplo da Oásis FM em 2002,  durante 10 anos, na rádio Ecoacre FM, no Brasil, por 6 anos, na Amazonas FM, e durante todo esse tempo foi auxiliado por inúmeras pessoas queridas, a exemplo da Marlene Calizaya, da Jaiane, através das quais amplia o leque de admiração e agradecimento a todos os demais que se propuseram a auxiliá-lo a troco da amizade e gosto musical.

Confere-se da identidade de Elivio que seu nome é Elivio de Souza Campos. Um incêndio na casa onde morou, quando adolescente, tomou por cinzas os pertences da família, e salvar os documentos foi inevitável. Não se sabe como o seu nome aparece dessa forma, e o porquê, ou se Elivio procurou retificar o erro, porque isso não o ignorou ou modificou sua vida como Elivio Bernardo.

Agradece a Deus pela dádiva da vida, descrevendo as ações da esposa e dos filhos que o mantém vivo e feliz pela ação de cada um em prol de sua família. A estrutura corporal fragilizada ainda tem um coração que bate forte.

Agradece, também, aos professores que teve em Plácido de Castro, a todos os integrantes do SESC LER, ao Rochinha, à Miraselva, ao Francisco (professor Chico), estendendo o cumprimento, por eles, a todos os profissionais da educação que lhe ensinaram a ler e a escrever um pouco a partir de sua idade, assim como o fazem em prol daqueles que, sem os rigores do tempo, sabem que estudar é preciso, e que educar é mais ainda.   

Se pudesse contabilizar as dores diz que foram necessárias para não desistir, assim como a relutância transparente de cada um dos seus pelo mesmo propósito, e assim o faria, para que fossem úteis à mudança dos que não conseguem se reencontrar com a alegria e os sonhos, que de fato devem voar alto o mais próximo de Deus.

Elivio Bernardo acompanha-me até o portão verde, agradece, e vou embora sabendo que toda história de um bom ser humano merece ser compartilhada. 

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Marlene V. Oliveira Há 3 anos Plácido de Castro Quero parabéns que lindo trabalho
ELIZANILDA RIBEIRO CAMPOSHá 3 anos RecifeNossa meu pai .minha história ?
Paulo RobertoHá 3 anos Plácido de CastroObrigado meu nobre pela oportunidade.
Franchesco AlvesHá 3 anos Plácido de CastroMeu grande amigo Elivio. Companheiro de Rádio. Sinto-me feliz por ele ser um profundo admirador do meu trabalho prestado em Plácido de Castro. Desejo-lhe muitos anos de vida a frente. Parabéns Dr Paulo Roberto pela maestria em redigir textos.
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