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A Dona Lalá que Conheci

A biografia de uma mulher que encontrou a felicidade na simplicidade e na dedicação à família e comunidade

05/09/2024 às 20h29 Atualizada em 05/09/2024 às 21h48
Por: Paulo Roberto
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A Dona Lalá que Conheci

A história cuja essência e base compartilho com nossos leitores, é de Maria Batista dos Santos, carinhosamente conhecida como Dona Lalá, que se assemelha a um testemunho vivo da força e esperança de tantos brasileiros que empunham suas bandeiras a enfrentar problemas em busca de melhores condições de vida, distantes de suas terras natais, ou aqui mesmo, bem pertinho.

 

Meu nobre amigo Chicão, diretor deste periódico, disse que escrevo bem e com sensibilidade poderia retratar este caso. Modéstia à parte. Aceitei o desafio de então conhecer um pouco sobre as pessoas que, do meu cenário, apenas de vista as vi passar, mas jamais havia parado um pouco em seus lares para perceber que em toda parte existe gente de bem e receptiva. São muito mais simples do que pensamos.

 

Essa senhora com traços característicos dos climas que moldaram sua força, que utiliza lenços na cabeça no rito e hábito de seu dia a dia, nasceu em 1938, na localidade chamada Lagoa da Serra, Ceará, soma 86 anos de idade a partir das informações contidas em sua identidade (ela diz que tem mais), e carrega em suas memórias o retrato de um Brasil em transformação, desde os áridos sertões nordestinos até as outrora exuberantes florestas do Acre.

 

 

Ela me confessou, com um sorriso enigmático, que a data de nascimento registrada em sua cédula de identidade não condizia com a verdadeira. “Minha mãe sempre me disse que eu vim ao mundo no dia 2 de fevereiro de 1932”, afirmou com convicção. E, para minha surpresa, essa senhora de [92] anos de idade revelou uma memória prodigiosa, que superou em muito a minha própria capacidade de recordar.

 

Trata-se de um relato tecido em meio a cortinas de fumaça em nossas florestas, à sequidão e aridez vorazes que transformam em cinza e carvão as plantações e os capins do gado que rumina resíduos de grama torrados, que devasta florestas inteiras e animais, e deixa no ar a força de tempestades contraídas, e talvez seja por isso que a jornada dessa personagem começa no Ceará, terra marcada pela seca e pela luta constante em prol da sobrevivência. 

 

Circulam notícias de que uma forte chuva desabou sobre vários municípios do Estado do Acre nesta tarde. No entanto, até o momento em que finalizo este texto, Plácido de Castro ainda não havia sido agraciado com as gotas revitalizadoras da chuva, permanecendo à espera da tão necessária precipitação. Diz que nasceu em época de seca no Ceará. Sua primeira comida foi angu de farinha de rapadura preta. O cenário era o Pé da Serra da Mutuca. Seu pai arranjou recursos para que ela pudesse estudar um pouco em casa, uns quatro meses, e depois aprendeu um pouco na cidade. Aprendeu a ler em Presidente Médici-SP, quando tinha 12 anos.

 

 

 

Dona Lalá é uma verdadeira artista em diversas áreas. Ela sabe confeccionar rosas de todos os tipos, bordar com habilidade, dançar e até mesmo “amarrar toalha”, que é considerado um dos processos mais difíceis. Além disso, ela domina o ponto crivo, que é considerado o mais desafiador de todos. Ela afirma ter aprendido vinte e cinco tipos de ponto bordado no Ceará, e as demais habilidades desenvolveu sozinha, observando e praticando em Plácido de Castro.

"Eu via as pessoas fazendo e, quando chegava em casa, eu tentava fazer igual", ela explica. Amarrar toalha é um processo delicado, que envolve desfiar uma toalha e criar a renda desejada.

 

Aos cinco anos de idade, ela perde o pai, um golpe que moldaria sua vida e as de seus irmãos. A busca por melhores condições os leva a uma odisseia pelo Brasil passando por São Paulo, Paraná, Bahia e outras localidades até finalmente chegarem ao Acre.

 

Quando morou em São Paulo, integrou-se a uma seleta equipe responsável pela zeladoria de um prédio de 25 andares, e até hoje guarda com orgulho a chave de acesso à dependência que se encarregava de zelar. É uma chave comum, e creio seja mais antiga que ela ou forjada na mesma época. Ela também trabalhou na plantação e coleta de algodão com peneiros enormes rodeados ao corpo.

 

 

Em 1985, aos 47 anos, Dona Lalá, que havia desfrutado dos doces momentos na companhia do esposo que consigo seguiu na luta e na vida por um espaço, enfrenta a tristeza e a dor da perda do amor de sua vida com quem comemorava dois anos de casamento, encontrando nos parentes próximos, limitados àqueles de sua linhagem, seus irmãos, a união e a segurança, para embarcarem do Nordeste e chegarem em Plácido de Castro, no Acre.

 

O contraste com as terras que deixaram para trás era gritante. O Acre representava um sonho motivado pela promessa de uma nova vida, com suas florestas verdejantes, chuvas abundantes com pontualidade e trabalho que não acabava mais. Se existia trabalho, a colheita era certa e a fertilidade ampliava gerações.

 

As colônias, seringais e fazendas no Acre ofereciam uma qualidade de vida invejável. Era um sonho de fartura e prosperidade para aqueles que vinham de regiões castigadas pela seca. E o paraíso do ramal da Enco, e depois a permanência no Mendes Carlos I, tornou-se uma realidade para a família, graças à união da esperança e da fé, e ao apoio de muitos amigos e conhecidos, como João Jorge e tantos outros que ainda estão por aqui.

 

Ao chegar em Plácido de Castro, observou a cidade que se concentrava num pequeno aglomerado de casas, na verdade uma invasão. Dona Lalá e sua família se estabeleceram inicialmente no ramal Mendes Carlos I, antes de se mudarem para a casa onde ela reside até hoje, na Rua Vicente Carneiro, bairro Manchete.

 


 

A história de Dona Lalá é entrelaçada com a de seu sobrinho Serafim, um homem de força e criatividade extraordinárias. Foi Serafim quem construiu a casa onde ela morou com as irmãs que se tornaram viúvas e juntas se fortaleceram, e agora, sozinha, firma-se na mesma simpatia a receber pessoas de sua amizade e família, como o Sr. Elias da Silva Teixeira, o “Grandão”, que com ela conversa no batente de entrada na hora que a revisitei para compreender um pouco mais de sua história. 

 

 

Elias foi o responsável por negociar os pertences da família de Dona Dadá no Nordeste. Ele permaneceu lá até concluir a venda de todos os bens, e somente então pegou o dinheiro e veio entregar ao chefe da família em Plácido de Castro. Mas, ao contrário do que se poderia esperar, Elias não sentiu saudade de voltar para o Nordeste. Em vez disso, ele abraçou o Acre como sua terra querida, adotando-a como seu novo lar.

“Ave Maria! Todo mundo nos conhece. Quando nois chegou aqui, minhas irmãs ficaram viúvas também, e por isso ficamos as três numa mesma casa. Meu sobrinho é que cuida de mim, ele é um menino muito bom. Ele cuida de mim como se fosse um filho. Toda vida nois moramos pertinho um do outro. Eu conheci esse meu sobrinho com duas horas de nascido. E eu lá pensava, como moça velha, que um dia Serafim ia cuidar de mim? Mas aconteceu, e sou feliz por isso. As coisas do mundo só Deus sabe. Eu tenho três sobrinhos. Tenho uma sobrinha que mora em Rio Branco,” confessa sem exaustão e com paciência de quem tece a linha e os pontos da vasta engrenagem do artesanato, como os pontos crivo que se orgulha em dizer que, embora complexos, não se deu por vencida e hoje ainda os domina, expondo um pouco de seu trabalho sobre o assoalho de madeira, troféus que ostenta desde a adolescência.   

 

Logo à frente, Serafim reside com a família, sempre com olhar cuidadoso dirigido à tia, tanto que ainda jovem preparou todo o material de uma casa e o empregou na construção com o suor do rosto e mãos habilidosas, conseguindo concluir a construção do pequeno imóvel onde a tia mora há 37 anos. Ele personifica o espírito empreendedor e a perseverança que caracterizam muitos dos que buscaram uma nova vida no Acre.

 

O tempo passou depressa, mas não impediu que Dona Dadá presenciasse mudanças profundas na região, como o verde exuberante de 1985 que os recebeu, que floresceu e agora cede lugar a um cenário árido e tóxico aguardando uma chuva milagrosa do céu. E as chuvas, que antes caíam em abundância entre agosto e setembro, esbarram no calendário do tempo incerto e escasso. Um tempo que promete chuvas volumosas e transforma imediatamente a esperança em calor e sofrimento de cores de fumaça e poeira. O ciclo de plantio e colheita, tão vital para os agricultores, foi drasticamente alterado.

 

"Nos meses de agosto e setembro chovia muito. Tá muito diferente. Mudou muito, muito mesmo", lamenta Dona Lalá, sua voz carregada de nostalgia. Essa mudança climática não apenas afetou a agricultura, mas também transformou a própria essência da vida na região.

 

Apesar das mudanças e desafios, Dona Dadá mantém uma atitude positiva e grata. "Graças a Deus eu sou uma pessoa que tive uma vida boa", ela afirma. Sua fé e força interior são evidentes em cada palavra, em cada lembrança compartilhada.

 

Ela se deita a partir das 18h, e por volta das 22h, adormece. Acorda-se entre 3h e 4h da manhã, tece um fumo no cachimbo, e vai fazer o café. Incrivelmente às 8h30min o almoço está pronto, e o jantar está servido às 15h. 

 

A rotina diária de Dona Lalá é marcada por uma simplicidade e uma disciplina admiráveis. Deita-se por volta das 18h, e por volta das 22h, adormece. Mas o seu dia começa bem antes do sol nascer. Sempre a partir das 3h ou 4h da manhã ela se levanta, prepara o seu cachimbo e faz o café. O que mais me aguça ao questionamento é o fato de ela conseguir preparar seu almoço pontualmente às 8h30min e o jantar às 15h, isso. Não digitei errado não, três horas da tarde. 

 

Sou acostumado a deixar gravado no celular meu horário habitual de levantar, ou seja, às 5h30min, isto de segunda a sexta-feira, e um pouquinho mais adiante para os feriados e finais de semana; almoçar cedo quando me dou a esse privilégio, ou seguir minha rotina própria quando enfim chegam os dias de descanso. Só que Dona Dadá tem seu ritmo próprio, que parece funcionar perfeitamente para ela. 

 

Por outro lado, Serafim consegue enobrecer ainda mais o coração ao dizer que é conhecido em toda Plácido de Castro não pelo poder econômico, que não tem, mas pela pessoa que é, honesta e trabalhadora sempre ao lado de Vandeildes, sua esposa, com a qual tem três filhos, dois homens e uma mulher. Afirmo que o presenciei a desembarcar cinco estacas pesadas de sua bicicleta cargueira, e ainda tento compreender como é que se consegue força e equilíbrio com tão vasto e pesado material numa magrela. Mas é a necessidade que mobiliza gente dessa magnitude que confere resposta à indagação.  

A sala da casa de Dona Lalá, decorada com símbolos de fé herdados de seus pais, é um testemunho silencioso de sua jornada espiritual. Embora não necessariamente lhe recaia a condição de praticante da mesma religião deles, essa senhora nonagenária de ouvir dizer da mãe, e octogenária na documentação civil, carrega consigo a força da fé que a sustentou ao longo da vida. Perdeu os pais, as irmãs e o marido, mas a fé lhe sustenta e não há Matemática ou desencontros de informações do registro civil que esclareçam que ela tenha a idade que tem, porque vitalidade, lucidez e determinação de um jovem ela tem de sobra.

 

A história de Dona Lalá é um mundo pontilhado de transformações como seus bordados, destacando um Brasil assolado pelas queimadas e secas, especialmente a região Norte, enfrentando dor e tristeza nas últimas décadas. O sonho de uma terra fértil e abundante que atraiu pessoas de todos os lugares do país para o Acre agora enfrenta os desafios das mudanças climáticas e do desmatamento.

 

Enquanto converso com Dona Lalá e a observo em sua casa simples e acolhedora, não posso deixar de me emocionar com sua força e otimismo na idade que tem e na sensibilidade de cada sentido. Ela representa uma geração que enfrentou inúmeros desafios, que trabalhou para si e para muitas pessoas de posse, utilizou-se dos únicos transportes da época dirigidos por Mário Lúcio e outros motoristas do Cássio, nunca perdeu a esperança de não querer muito, mas o suficiente para ter dignidade.

 

Eu preciso saber se Dona Lalá aprecia outros entretenimentos, principalmente a música. Ela diz que já dançou xote, maracatu, forró nas associações de Plácido de Castro, samba, e arrisca-se a cantar Sabiá, creio de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, mas me perdoe a devida autoria:

“Tem pena d'eu (Sabiá)

Diz por favor (Sabiá)

Tu que tanto anda no mundo (Sabiá)

Onde anda o meu amor

Sábia”

- Mas olha ela cantando! Digo admirado.

 

Dona Lalá conta que, quando quer conversar com os parentes, o sobrinho Serafim gentilmente empresta o seu aparelho, pois ela não possui um e não sabe como usá-lo. Aliás, mesmo que tivesse, ela não saberia como manuseá-lo.

 

 

Ela revela que já teve uma televisão, mas a deu, pois na época só pegavam os sinais da Globo e da Manchete, que ela acredita que já não existem mais. Mas há algo que ela realmente gosta: o rádio! (risos). Ela tem uma geladeira velha, mas que ainda funciona bem.

 

Ela confessa que adora ouvir o Chico Banana e também gosta da programação da missa e dos eventos da noite como suas faixas preferidas. É como se o rádio fosse uma companhia constante para ela, trazendo alegria e conforto para o seu dia a dia.

 

A vastidão verde que pulsa em nosso Brasil nos chama para uma reflexão profunda neste Dia da Amazônia, transferido para 6 de setembro. A história da Dona Lalá, entre tantas outras, ecoa em nossos corações, lembrando-nos do sonho de uma terra próspera que atraiu tantas famílias ao Acre. 

 

A mensagem traduz a esperança e um chamado à ação, porque se Dona Lalá e sua família enfrentaram desafios com coragem e determinação, nós também podemos enfrentar os desafios ambientais de hoje. A fé que sustentou Dona Lalá em sua jornada pode nos inspirar a acreditar que, com ações concretas e comprometimento, podemos preservar a Amazônia para as gerações futuras.

 

 

A história de Dona Lalá, com sua mistura de saudade e esperança, nos lembra que a Amazônia não é apenas uma floresta, mas um lar para milhões de pessoas. Ao celebrarmos o Dia da Amazônia, renovamos nosso compromisso de proteger este tesouro natural e as vidas que dele dependem.

 

Para encerrar, gostaria de compartilhar um poema que busca capturar a essência da jornada de Dona Lalá e de tantos outros que vieram para o Acre em busca de seus sonhos:

 

 

"Sonhos na Floresta"

 

Do sertão seco, partimos um dia,

Carregando esperanças na bagagem vazia.

Acre, terra verde, promessa de vida,

Nos chamou com voz de mata florida.

 

Chegamos com sonhos maiores que a mata,

Mãos calejadas, alma de cascata.

A floresta nos abraçou, generosa,

Oferecendo frutos, sombra preciosa.

 

Anos se passaram, o verde mudou,

A chuva escasseou, o calor aumentou.

Mas a força que nos trouxe permanece,

Na fé que nos guia, no amor que cresce.

 

Dadá e tantos outros, guerreiros da vida,

Guardam na memória a floresta querida.

Seus olhos brilham com as lembranças do passado,

E a esperança de um futuro preservado.

 

Ó Amazônia, mãe de mil riquezas,

Que teu dia nos lembre de tuas belezas.

Que possamos cuidar, proteger e amar,

Para que os sonhos possam sempre brotar.

 

Pois na terra do Acre, onde a vida prospera,

O coração do Brasil ainda pulsa e espera.

Que as histórias de luta, fé e união,

Sejam sementes de uma nova geração.

 

Este poema busca honrar a jornada de Dona Lalá e de todos aqueles que, como ela, vieram para o Acre em busca de uma vida melhor, enfrentando desafios, mas mantendo viva a esperança de um futuro próspero e sustentável para a Amazônia.

 

Paulo Roberto de Araújo Pereira, personagem vivo igual a você; juntos, contamos nossa história.

 

 

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