José Lanzellotti é um artista singular. Nascido em São Paulo, descobriu ainda adolescente a sua vocação de pintor. Era essa, como ainda hoje, uma época de muitos ismos, todos internacionais: cubismo, abstracionismo, concretismo. Desprezando as figuras, os pintores se refugiavam na geometria, ou então realizavam obras baseadas unicamente na imaginação. Lanzellotti, tão humilde quanto obstinado, preferiu pintar a realidade. Para fazê-lo, tornou-se uma espécie de pioneiro dos hippies. Mochila às costas, viajou a pé, de jangada, carro de boi e trem. Assim correu o Brasil de ponta a ponta, evitando as grandes capitais. Nas pequenas cidades do interior e nas aldeias indígenas, foi construindo uma fabulosa coleção de pranchas nas quais, a nanquim e a cores, aparece reconstituído em seus mínimos detalhes o Brasil autêntico, com as roupas típicas do povo, suas armas e utensílios indígenas, as festas folclóricas.
O resultado de todos esses anos de pesquisa e trabalho tem grande valor artístico e também científico, pois representa o mais completo levantamento etnológico e de costumes de nosso país, neste século. Uma única vez Lanzellotti se apresentou ao público, em exposição organizada em São Paulo pelo escritor Afonso Schmidt. Encantado com os desenhos-documentários, Schmidt definiu Lanzellotti numa frase que dá bem a idéia do valor de seus trabalhos: “Ele é o Debret do Século 20.” Agora, suas pranchas serão divulgadas em luxuoso álbum patrocinado pelo Conselho Estadual de Cultura de São Paulo. Um público constatará, desta forma, que Lanzellotti conseguiu tornar verdadeira a frase de Monteiro Lobato, que adotou por lema: “A arte, quanto mais nacional, mais internacional se torna“.
José Lanzellotti estava com 17 anos em 1949, quando foi organizada uma expedição ao Roncador-Xingu, chefiada pelo Dr. Silvio Greco, um médico que ia ao encontro dos Irmãos Villas-Boas. Do grupo faziam parte engenheiros, médicos, sanitaristas e fotógrafos. Faltava um desenhista. Por intermédio do fotógrafo João Ficker, Lanzellotti conseguiu o lugar de documentarista. A viagem foi fascinante. Com o bico-de-pena, ele transportou para pranchas a estrutura da arquitetura das malocas indígenas, os traços e a arte da cerâmica, da escultura, as armas e utensílios fabricados pela técnica milenar dos índios. Desse material, parte se perdeu num naufrágio, lá mesmo no Xingu, e o resto ficou com o chefe da expedição. Entretanto, alguns esboços em papel de seda ficaram com o autor.
Depois dessa primeira viagem, Lanzellotti ficou convencido de que era possível realizar a mais completa documentação etnológica e de costumes do Brasil. Com essa decisão, saiu pelo país, mochila às costas. Pacientemente estudou as manifestações artísticas do povo, seus costumes, e as diversas peculiaridades regionais. Procedia como Villa-Lobos, que convivia com índios e caboclos para aprender, deles, a arte tropicalista autêntica, sem as deformações cosmopolitas da arte das grandes cidades.
Um dia o dinheiro acabou e ele teve que parar. Faminto e em andrajos, veio viajando por favor até chegar ao Rio, onde conheceu o professor Darci Ribeiro, do Museu do Índio. Este, após examinar os trabalhos do documentarista, declarou que era excepcional a qualidade das pranchas. Alguns dias depois, no entanto, numa , crítica objetiva e honesta, lembrou a Lanzellotti que há grande diferença entre o documentário e a arte. Na arte, o que é exótico se mistura com o que vem do gosto estético do criador, enquanto o documentário exige que o artista se submeta a um critério científico rigoroso. O Professor Ribeiro ensinou a Lanzellotti um método para a realização de seu trabalho, dando-lhe livros de etnologia e folclore para que pudesse aprofundar mais seus estudos e observações.
Nessa ocasião, Lanzellotti expôs os seus desenhos-documentários na antiga Galeria Lotis Seavers, de São Paulo. O objetivo da exposição era chamar a atenção das autoridades para seus trabalhos, a fim de completar uma pesquisa sistemática em todo o país, coisa que somente poderia fazer com ajuda financeira. Todos os que viram a exposição, a começar pelo escritor Afonso Schmidt, foram unânimes em reconhecer na obra de Lanzellotti o equivalente da obra de Debret no século 20. Os mínimos detalhes dos trajes, técnicas artesanais, artes, folclore, danças, costumes e até alimentos ou técnicas de preparação de alimentos estavam definidos nos traços finos de nanquim, documentando um Brasil dos nossos tempos como nenhum outro artista conseguiu fazer.
Apesar de ter vendido todas as pranchas que expôs e apesar dos esforços de Afonso Schmidt, o artista não conseguiu impressionar nenhum gabinete governamental. Contudo, o Professor Darci Ribeiro veio mais uma vez em seu auxílio. Graças a ele, Lanzellotti conseguiu recursos para pesquisar e, tendo acesso ao Museu do Índio, pode documentar todas as peças ali existentes, como arte plumária, armas, cerâmica etc. Mais tarde, o Professor Herbert Baldun lhe franqueou o Museu do Ipiranga, de São Paulo, de que era diretor. Para que o artista complementasse o trabalho iniciado no Museu do Índio, foi designada a etnóloga Vilma Chiara para orientá-lo.
Em 1956, Lanzellotti se casou e teve que abandonar as viagens para sustentar a família. Assim terminava a sua grande aventura pelas estradas do Brasil. Recentemente, parte de suas pranchas foram adquiridas pelo Conselho Estadual de Cultura de São Paulo. Elas serão publicadas em luxuoso álbum que terá texto do Professor Maynard de Araújo. De qualquer forma, ele conseguiu aquilo que pretendia desde jovem, isto é, ter uma visão nacional da arte.
Além dos documentários, ele é também pioneiro das histórias em quadrinho em nosso país, tendo criado o personagem Raimundo, o Cangaceiro, que acabou sendo transformado em figura mitológica no sertão, a ponto de Vitalino reproduzi-lo em bonequinhos de barro que se vendiam rapidamente na feira popular de Caruaru, Pernambuco.
Com extraordinária riqueza de detalhes, José Lanzellotti reconstituiu o Brasil de hoje. Suas pranchas representam uma vasta coleção na qual esse Brasil aparece em nítidas imagens. Ele fez o levantamento dos objetos (esculturas, máscaras, cerâmica) fabricados por tribos indígenas. Fixou também, em cores, alguns exemplos da técnica popular, como a jangada nordestina, a casa sobre palafitas da região amazônica e a barcaça com carranca da região do rio São Francisco. Do Brasil humano também nos dá retratos fidelíssimos, mostrando o tipo físico e os trajes típicos do gaúcho, do vaqueiro nordestino, do cangaceiro, da baiana com tabuleiro etc.
Ainda que sua obra seja considerada simplesmente fabulosa, ele lamenta não ter podido (faltou dinheiro) fazer o levantamento sistemático e completo do Brasil inteiro. Mas, em suas andanças, observou pacientemente os diferentes Brasis que se apresentam em pelo menos dez estados. Tal como Debret, sua obra tem valor artístico, histórico, etnológico e folclórico. Sua curiosidade, transformada em pranchas coloridas, abrangeu, em cada cultura visitada, das danças aos rituais religiosos, da arquitetura primitiva à cerâmica utilitária.
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