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O Papi em carne e osso

Brava gente

08/12/2021 às 17h32 Atualizada em 08/12/2021 às 19h32
Por: Paulo Roberto
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O Papi em carne e osso

O nome dele é Manoel Neves de Souza. É mais conhecido desta forma pelos sistemas integrados responsáveis pela feitura de sua certidão de nascimento, do CPF, da identidade, da Assistência Social, enfim, cadastros que ainda têm em arquivo o nome de um brasileiro nato e trabalhador. Já no programa Bolsa Família ele é tido como um miserável, um ser carente, um desvalido, alguém que clama do governo S.O.S. de quase último suspiro. Ganha não mais que R$ 150,00 por mês para sobreviver.

Mas deixando o nome para lá, resta o codinome, talvez o apelido, a alcunha trivial que decifra a compleição física ou simplesmente a maneira sensata e honesta do ser pai de família que um dia constituiu uma prole e hoje vive sozinho numa casa de 16 m2.

Esse que alguém em algum momento já lhe tenha estendido as mãos, talvez com latinhas de cerveja tomada nas noitadas de Natal e de Ano Novo, ou de refrigerantes que regaram festas; comida, dinheiro, ou que já tenha necessitado de seus préstimos baratinhos para realizar limpeza de quintais.

Tudo agora é reflexo na saúde deste homem que hoje vê apenas vultos através do olho esquerdo e baixíssima sonoridade através do ouvido do mesmo lado. Uma só palavra não basta para que ele escute e entenda. São necessárias várias tentativas. Ele é o Papi, isso, o pequeno grande homem do bairro São Cristóvão, em Plácido de Castro.

Na rua pavimentada por tijolos a casa denuncia que o tempo não tem sido nada generoso nem com o morador tampouco com as esquadrias que desenham a tradição de moradias do lugar. Se de um lado a cobertura é suportada por telhas fragmentadas e remendos de toda ordem, no interior da casinha são sacos e tapa-buracos que se avolumam devido na temerosa inquietação e desconforto que lhe causam as chuvas que assolam a região.

A cama é coberta por um longo plástico encardido que serve para proteger os achados que aos poucos se avolumam a tomar praticamente o único móvel àquele corpo cansado e de mãos calejadas. Não há descanso para ele em meio ao amontoado de coisas achadas pelas ruas.

O que seria o forro da casa, são pernamancas aparentes que sustentam outro tipo de madeira frágil a servir de cabide; o ventilador, ou melhor, as hélices expostas e sem segurança, concentram-se na força elétrica a proporcionar uma ventania espalhada sobre ele. A conta de luz é bem baixa, porque na verdade há um bico de luz e a gambiarra que ele chama ventilador.  

- Uma criatura que foi colocada no mundo não sabe o que acontece com ela naquele momento. Não sei se fui criado por aqui ou por outro canto, sabe?

- Eu tô com oitenta anos de idade hoje. E olhando para ele é impossível acreditar que apresente biologicamente tal idade, uma vez que o registro de nascimento e a identidade constem a data de nascimento como sendo 17.05.1958, ou seja, 63 anos, cronologicamente. Manoel informa que sua irmã mais nova tem setenta e oito anos de idade, sendo que ele é o mais velho e com dois anos superiores a ela.

- Éramos dois casais. Apenas eu e a Eva sobrevivemos. Ela mora na Extrema. Relata que há três anos não vê a irmã.

- Eu cheguei para morar mesmo em Plácido de Castro em 1982. Em vim lá do seringal São Gabriel. Até 20 anos de idade morei lá. Saí das mãos do meu padrasto quando tinha 30 anos.

Questionado sobre o que faziam lá, informa que era trabalho de extração de leite da seringueira.

- Com dezesseis anos eu comecei a cortar seringa. Só que eu não fui orientado e nem ensinado por ele, meu pai. Eu apenas olhava os traços que ele fazia na madeira, o corte preciso e delicado para ela derramar o leite. Ele cortava sozinho; eu, apenas olhava quando tinha oportunidade.

Quando me empenhei em cortar seringa eu me punha a verificar os traços que meu padrasto fazia na árvore, a quem chamou de pai. Um dia eu fui acompanhar ele. Fui atrás e observei melhor.

A sobrevivência do homem na cidade não é fácil. O homem de pouca instrução é atormentado. Ele pede, troca suas forças por alguns trocados.

Eu ando por aí. Tenho conhecimento com algumas pessoas que me pedem para cuidar de suas casas enquanto se ausentam por uma semana, dez dias. Tem um casal de idosos ali que sempre me chama para cuidar da casa deles.

Noutro tipo de trabalho eu trabalhava, só que agora não aguento mais. Trabalhei uns quinze anos para aqui e para acolá. Um dia as pessoas me disseram que não podiam me pagar e deixaram de contratar os meus serviços. Fiquei de lado como uma folha de lixa ou esmeril que não presta mais.

O Manelzinho e o Darin já trabalharam comigo.

Nunca trabalhei de carteira assinada.

Trabalhei por quase um ano na serraria, puxando pó.

                E atualmente...

- Algumas pessoas conceituadas e até políticos renomados de Plácido de Castro me ajudaram e continuam me ajudando. Sou grato a elas. Se hoje eu recebo esse dinheiro do Bolsa Família, se hoje eu estou adquirindo suprimentos, graças a elas e há muitas outras.

Papi é um homem que não esquece os favores recebidos.

- Antes eu ia a pé para o lixeiro juntar latinhas para sobreviver. Eu levava sacos que me serviam para trazer nas costas as latinhas. Hoje muitas pessoas me ajudam e eu cessei as andanças para aquele lugar. Também já não tenho forças. Nunca tive um transporte próprio na vida.

A casa pouco comporta utensílios ou móveis no interior. São sobras do que foram aparelhos de som, máquinas de lavar, ferragens, remos, linhas de pesca, sacos plásticos, caniços, televisores inservíveis, panelas, copos, violão. Existe uma canção da vida para esse senhor, deve existir uma poesia ou acalanto.

Na área externa, detrás da casa, são amontoados de máquinas de lavar que, segundo ele, juntava para retirar alguma peça e recompor outras ao uso. Só que pouca coisa sobra quando se transforma em lixo, a não ser o depósito que se avoluma em sua residência e área externa.

- Alguém trazia para mim, alguém me dava informação para eu buscar. Eu pedi para parar porque não posso mais trabalhar. Tenho que colocar tudo lá fora para queimar.

- O aparelho de som foi eu que comprei, mas ele só vivia no prego. Mandei arrumar ele, que não prestou. O rapaz tirou o material dele e ficou apenas o rádio nesse aparelho. A fita aqui já deu prego.

- Eu tenho enfrentado problemas com os serviços que as pessoas têm prestado a mim. Há muitos erros. Eu não tenho problemas em assinar o meu nome, por exemplo. Faço devagar, mas ela sai certa. Tenta questionar o fato de que a data de seu nascimento está errada, que tem 80 anos de idade e não 63 como consta em sua documentação, e que o fator idade, assim como intenta, é necessário à aposentadoria.   

- Disseram que a minha identidade estava vencida. Eu lutei de um lado para outro pedindo alguém para me ajudar a ir até Rio Branco para reformar. Eu não tenho de onde tirar o dinheiro e nem havia encontrado alguém para me ajudar a tirar a documentação.

- Olha, o meu padrasto era chamado de pai. Eu dizia para ele assim; Pai, eu estou precisando de documentos. E ele me perguntava pra quê eu queria documento. Vá riscar seringa!

- Eu tenho que estudar para poder assinar o meu nome. Vá cortar seringa!

 - Um dia eu vou embora, pai, pois aqui não tá dando certo não. Ele me ameaçava peia e morte.

- Hoje eu já não faço nada. Até que tento. O veneno e as roçadeiras vieram com força e me cortaram a esperança de ganhar o pão, aquilo que eu sabia fazer.

- Atualmente eu sobrevivo com essa ajuda do programa Bolsa Família e de alguns favores que me têm prestado pessoas de bom coração, como a dona Antonia Aquino, o vereador Rogério, a dona Sônia e tantas outras pessoas maravilhosas.

E por falar em tristeza...

- Uma grande tristeza, sabe o que é? É a gente morar só. Às vezes eu quero ainda fazer algum trabalho por aí e não tem ninguém para cuidar dessa casa para mim. Se eu for, quando chegar está tudo furtado. Aqui já me furtaram quatro vezes, meu filho.

- Levaram esse violão, levaram o som, levaram as caixas, levaram esse rapazinho ali, referindo-se a um cavaquinho. Prato, colher, levaram tudo.

Sobre as coisas no chão.

- Minhas coisas estão assim porque não tenho onde colocar. Essa casinha é apertada. Essa casa mede 4m por 4 m. Não dá quatro direito não.

- E sobre o que espera da alegria em sua vida...

- Eu vou me sentir feliz quando organizar a minha areazinha. Eu queria fazer alguma coisa para ajuntar gente para gente conversar, palestrar, confraternizar.

- Às vezes as pessoas podem até pensar que a gente seja levado à breca. Mas não é. Eu tenho vontade de organizar a minha casinha, mas não tenho espaço para isso. Tudo vive atrepado porque não tenho lugar.

- Não sei o que é um guarda-roupas, cabides, organização. Aliás, meu modo de falar, porque na verdade me refiro à visão do meu sonho, e isso não aparece em concreto.

- Isso aqui é a minha roupa que eu lavei e não enxugou. Por isso está dentro dessa bolsa que utilizo para guardar o material de pesca.

- Meu irmão, eu não me incomodo ao relato da minha história. Eu vivo sozinho, não tenho companheira, só meu casal de filhos que não mora comigo, que tem a vida deles.

E com muita dificuldade visual, sem óculos, aproxima-se quase encostando os olhos na carteira de identidade que lhe apresento com o nome a identificar, e soletra A-de-lia, pessoa querida da vida que faleceu quando Manoel era criança, sua saudosa mãe.  

                Falar é fácil que só. Ver não corta mais o coração do que o bolso.

                Segundo dados da Secretaria Especial do Desenvolvimento Social, “no Brasil, há um número cada vez maior de pessoas idosas (com 60 anos ou mais de idade).” Refere-se aos cidadãos usuários dos serviços sociais, de saúde, de proteção e que precisam ter os seus direitos garantidos.

Relata que a menor mortalidade de pessoas em todas as idades e a diminuição de nascimentos resultam em um aumento não só no número absoluto de idosos como também na proporção deste grupo em relação à população brasileira. (Estratégia — MINISTÉRIO DA CIDADANIA Secretaria Especial do Desenvolvimento Social (mds.gov.br))

                Manoel Neves de Souza, o Papi, é figura daquelas que moram sozinhas, que não tem o mínimo conforto ou condição econômica a impulsionar o patamar da classe social a que se insere. Estará sempre mantido na escala baixa.

                É um cidadão que sonha com aposentadoria quando grande parte da vida foi ceifada por trabalho informal não reconhecido, sem filiação ou contribuição previdenciária; e no campo e na floresta, boa parte da vida e juventude, no território boliviano cortando seringa. Não mais espera adoecer, porque a situação é aparente. Denuncia de que tem questões salutares fragilizadas.

                Não obstante, com a visão esquerda aparentemente afetada, apresentando problema de surdez perceptível, carece, e muito, de encaminhamentos especializados.

                É daquelas pessoas que, bastando adentrar à sua casa, os olhos bons de quem vê e o coração que palpita a denunciar a verdade, sabe que ele, como milhões de brasileiros, é soldado de uma guerra social nefasta, que não perdeu o brilho e ainda luta por alguma vitória chamada dignidade.      

 

 

Paulo Roberto é servidor público (Técnico Judiciário)

Pós-graduado em Direito Previdenciário; Direito da Criança, Juventude e Idosos; Direito de Família

Universidade Cândido Mendes             

                 

               

               

 

               

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