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O outro lado do rio

A espinha que me fez engolir o outro lado do rio

Paulo Roberto
Por: Paulo Roberto
24/12/2024 às 09h32 Atualizada em 25/12/2024 às 09h54
O outro lado do rio

Rio Branco dos anos 80 tinha sua própria linguagem de exclusão. O "outro lado" - assim chamávamos o Primeiro Distrito, com uma mistura de reverência e ressentimento. Era como se nomeássemos não apenas um lugar, mas um mundo que não nos pertencia. Lá, onde os sapatos brilhavam em frente à Assembleia Legislativa, onde os carros eram lavados com água limpa, o Cerb onde estudei uma vez para ficar reprovado, onde as casas tinham telhas francesas e os sobrenomes tinham peso.

Do nosso lado, no Segundo Distrito, o café da manhã era uma cerimônia de escassez: pão manual contado, café refeito até virar apenas água escurecida com memórias de sabor. Era como se o rio que cortava a cidade também dividisse a dignidade - de um lado, a fartura; do nosso, a arte de transformar migalhas em refeição.

Eu atravessava vez por outra para o "outro lado", carregando mais que uma caixa de engraxate nas costas - carregava sonhos pesados demais para um adolescente. As catraias cortavam o rio como agulhas costurando dois tecidos que nunca se uniam verdadeiramente. Cada travessia era uma lição de humildade: meus bribôtes e refrescos eram invisíveis para aquela gente de posses, que mal percebia a existência de um menino do Segundo Distrito tentando ganhar a vida em suas calçadas.

No quartinho cedido por tio Antonio Timóteo na Rua Beira Rio, nossa matemática diária era precisa: um ovo dividido entre todos, uma lata de sardinha que precisava multiplicar-se como milagre, e a vergonha de ter que procurar substituir aqueles que se tornavam inservíveis à refeição. A farinha d'água era nossa aliada fiel, fazendo o pouco parecer mais, enganando a fome com sua textura generosa.

Naquele meio-dia da Rádio Difusora Acreana, quando cruzamos o bairro Cidade Nova em direção à casa dos tios, cada passo ecoava nossa condição. O atalho pela serraria O. Gema era mais que um caminho - era a rota dos que não podiam ser vistos, dos que existiam nas margens do "outro lado".

O cheiro da comida na casa dos tios era uma provocação dos sentidos. Enquanto as vozes de minha mãe e tia Enilza ecoavam da sala, meus pés me guiaram, involuntários, em direção àquela mesa. O aroma era um imã que puxava não apenas meu corpo, mas toda a fome acumulada de tantos dias de escassez. Ali, entre pratos usados e talheres dispersos, repousavam os restos de um banquete que, para mim, parecia digno de reis.

Meus olhos percorreram a mesa como ladrões numa joalheria, até fixarem-se no peixe. Era um peixe grande, ainda com carne generosa agarrada à espinha, como se me esperasse. O silêncio da casa pareceu aumentar, e eu podia ouvir apenas as batidas do meu coração e o ronco do meu estômago conspiratório.

Minhas mãos tremiam quando alcançaram aquela iguaria. Na pressa faminta, não havia tempo para modos ou cuidados. Agarrei um pedaço substancial, e num movimento quase selvagem, levei à boca. Foi quando a tragédia se anunciou: a espinha, traiçoeira, cravou-se em minha garganta como uma sentença.

O pânico foi imediato. A tosse veio, inevitável e denunciadora. Tentei contê-la, mas era como se a própria espinha quisesse gritar minha transgressão. O ar começou a faltar, os olhos lacrimejaram, e o desespero tomou conta. Não era apenas a dor física do engasgo - era o terror da descoberta, a vergonha do flagrante, a humilhação iminente.

Os passos apressados de minha mãe e tia vieram como trovões. Seus olhares de espanto e reprovação pesavam mais que todas as espinhas do mundo. Os tapas nas costas vieram sem cerimônia, alternados com murros desesperados para desalojar aquela intrusa que me denunciava. A farinha d'água, jogada às pressas em minha boca, finalmente conduziu a espinha para seu destino, mas o gosto da vergonha permaneceu.

Fiquei ali, ofegante e humilhado, as lágrimas agora não mais pelo engasgo, mas pela vergonha que me consumia. O silêncio que se seguiu era ensurdecedor. Nem os carros da rua, nem os pássaros nas árvores, nem mesmo minha respiração ainda irregular pareciam fazer barulho suficiente para preencher aquele vazio de dignidade.

A mesa, mesmo com restos, era mais farta que nossos sonhos de abundância. O peixe que me tentou - ah, o peixe! - era como um pedaço daquele "outro lado" que eu só podia observar de longe. A espinha que me denunciou trouxe não apenas o engasgo físico, mas o nó de todas as vezes que a cidade me lembrou meu lugar.

Hoje, quando posso, faço questão de borrar essas fronteiras invisíveis que ainda persistem. Minha mesa se tornou uma ponte entre os lados que a cidade insiste em manter separados. O café forte que agora posso tomar me faz lembrar do café ralo de outrora. O pão que não preciso mais contar me recorda cada pedaço dividido na infância, e talvez seja por isso que o destino me lotou numa corte de justiça.

Quando encontro alguém ainda vivendo entre essas margens, ofereço mais que comida - ofereço a compreensão de quem conheceu cada palmo dessa geografia da exclusão. Porque o "outro lado" nunca foi apenas um lugar físico - era um estado de espírito, uma condição social, uma marca invisível que carregávamos.

A espinha que um dia me engasgou virou lição: não existem lados quando se trata de fome e dignidade. O rio que divide a cidade não pode dividir a humanidade. Por isso, minha mesa hoje é um convite à união, um lugar onde "outro lado" é apenas uma expressão sem sentido, onde o café é forte para todos, onde o pão não precisa ser contado.

Porque aprendi que a verdadeira travessia não é de um lado para o outro do rio, mas do egoísmo para a solidariedade, da indiferença para a compreensão, da escassez para a partilha. E nessa travessia, carrego comigo cada memória de fome, cada gole de café ralo, cada migalha dividida - não como cicatrizes, mas como mapas que me guiam a ajudar quem ainda vive naquele "outro lado" da dignidade.

Paulo Roberto de A. Pereira é servidor público e carrega nas veias um pouco do ar e da terra placidiana desde 1985. Suas raízes se entrelaçaram com as memórias desse pedaço do Acre onde Brasil e Bolívia se encontram.

Em breve, estas memórias - que são tanto minhas quanto nossas - ganharão as páginas de um livro.

 

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Francisco OliveiraHá 3 semanas Plácido de Castro Dr Paulo Roberto você é uma pessoa maravilhosa que experimentou a vida sofrida enquanto criança como tantas outras, mas Deus lhe deu forças para lutar, não desistiu de estudar e conquistar a Vitória. Sou testemunha do quanto o amigo é agradecido a Deus, e suas ações demonstram o reconhecimento de sentir na pele a dor do próximo. Seu ofício é feito com responsabilidade social e com sensatez. Sempre está pronto para servir ao próximo. Que Deus abençoe plenamente sua vida pessoal e profissional...
Ruslândio Há 4 semanas Acrelândia Que belo texto amigo! Muito digno!
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