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Sapatos na vitrine

Nem tudo que reluz é couro

22/01/2022 às 10h12 Atualizada em 23/01/2022 às 09h09
Por: Paulo Roberto
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Cedida por Flickr imagens
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Os meninos da rodoviária no bairro Cidade Nova estavam eufóricos naquela manhã. Era 1978. Travavam disputas por sacolas e caixas dos passageiros nos embarques e desembarques do dia. Por um instante largavam as caixas de engraxar sapatos para provar que seus corpos esqueléticos ainda resistiam a fardos e ao suor por alguns centavos valiosos. Alguns torravam tudo ali mesmo. Outros, como eu, sabiam que outras bocas aguardavam em casa uma solução pacífica, quem sabe um pão manual com café, um churrasquinho, mingau de banana ou ovos cozidos preparados na rodoviária.  


A minha vez de testar o primeiro exercício e aquela caixa à ríspida e arriscada procura por um cliente, agora com os engraxates brigões correndo em ziguezague a auxiliar passageiros que ora saíam dos táxis, ora chegavam à rodoviária em busca de alguém que estivesse aguardando ônibus já com o bilhete nas mãos e um monte de coisas a embarcar, lendo uma revista da banca ao lado, testando os miolos com o Coquetel de palavras cruzadas, enquanto eu tentava um moderado e tímido “O Senhor quer que eu engraxe?”


Meu cardápio de nãos era como as solas dos pés: desgastados, mas necessários, embora que alguns sins representassem a felicidade de angariar os trocados mais valiosos que os centavos deles, não originários das brigas por caixas e sacolas para acomodar nos bagageiros dos ônibus, mas para ajudar em casa e tentar comprar o lindo sapato da vitrine dos Calçados Curitiba.

Isso, ali nas vitrines de frente pra Getúlio Vargas, bem na esquina e nas proximidades do semáforo, após o palácio Rio Branco, em frente ao hoje memorial dos Autonomistas, funcionava a loja mais atraente da moda masculina de todos os tempos. Meus olhos e o coração amavam os lustres, as luzes, cores e cada costura dos melhores pisantes do meu mundo imaginário inibiam o cansaço como o frescor do couro aveludado, da cola levemente aglutinada no lugar em que os pés sabiam que os calos não teriam vez, eu percorria quilômetros para ali estar.


Passava tempo dos meus dias olhando a vitrine, resistente à imaginação mais que à minha querência. Buscava no bolso os trocados para checar se já estavam próximos ao preço do anúncio, mas o certo é que eu tinha que vender mais refrescos, engraxar mais sapatos, economizar bastante e, obviamente, não desanimar ou desistir.


Fiquei feliz quando uma professora me chamou reservadamente e disse que me daria uma bolsa (creio que de estudo), e eu sabia que aquela oportunidade poderia mudar a minha vida e da minha família, porque essas coisas de escola eu sei de cor, dado o ensinamento de minha mãe antes mesmo de eu ir para a escola, e eu não me lembro se falei para ela o que a professora me contou, porque as grandes coisas da vida eram mais fáceis não apenas por influência, mas por perseguição e conquista. Certo é que a bolsa nunca chegou, e aquela mulher não deixou de ser a minha professora por conta de uma promessa não cumprida. E tudo não passou de uma lição para mim. A gente aprende com tudo nesta vida.


Era fim de tarde em Rio Branco, um domingo como de costume. Matinês dos Cines Acre e Rio Branco bombando. Bruce Lee numa tela; Giuliano Gema noutra, e eu, olhando para os preços da vitrine, desistindo da bilheteria por estar mais próximo de realizar o desejo de possuir um sapato novo e bonito, daqueles que o meu amigo Figueiredo conta em seu livro e que me emociona ante a nítida semelhança com estes relatos em certas passagens, não me importando com que roupa os sapatos se ajustariam, ou se acomodariam à pele inteira de cheiro de graxa ou de perfume da Praça da Bandeira de fragrância da Paco Rabanne.

Desenho feito por João Felipe - site VintePila


Tudo estava tão próximo entre a vitrine, os manequins e os sapatos que não percebi que alguém se aproximava, e mesmo de costas para a avenida fitava no sonho como a graxa das mãos sonha com água morna e sabão. Um cheiro de liberdade motivada a impulsionar os homens que apenas sonham em pisar nas calçadas e salas de autoridade com terno e gravata, gente que tem emprego certo, ou embora não o tenha, é indicada, designada a ganhar pão com mais facilidade.  


Porém, uma pancada certeira na região lombar me tirou o fôlego e as forças de gritar ou chorar, querendo resistir ao solavanco, puxar como um louco o ar que se esvaía, que há pouco tempo representava o meu sonho de adolescente, e me fazia cair ao chão estrebuchando sem fôlego e com dor. Mas por algum instante aquilo foi passando e consegui captar o ar que Deus me deu, respirar forte e me levantar.


Ainda assim consegui ver o sujeito olhando para mim, já seguindo próximo ao Ceseme. Marginal, filho de uma boa mãe, não teve o mais sublime ensinamento que o da minha, de ser tão estúpido e brutal. Ele eliminou o meu sonho, mas dalguma forma eu não trilhei o mesmo caminho que o dele, que de tênis e bermudas sujos sumiu como um raio para lugar nenhum.


Se por um lado os sapatos nunca me calçaram os pés dada a pouca economia, a não ser por doações de toda sorte e parentesco, como o tio Franco lá do Caçula Bar, em Xapuri, a vida me estendeu um tapete da cor dos sonhos a pisar e a transitar sem calos e com liberdade sem cheiro de Nugget, a mesma que tingia os sapatos de meu pai, esse maestro do qual herdei o tino daquele que se veste e de certa forma engoma os tecidos e ama seus feitos, para como um engraxate sempre perguntar: “Quer que eu engraxe? O senhor vai ficar melhor com o meu trabalho”.

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